quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Capítulo III

III
Cidade de Lobos

O sol estava forte no meio do céu quando chegaram a uma grande planície, quanto mais persistiam na caminhada a falta de água e o forte calor pareciam enfraquecer os animais que já cavalgavam lentamente. Quando haviam avançado cerca de trezentos metros dentro da planície, um odor fétido encheu-lhes as narinas, por cerca de quatrocentos metros a frente havia corpos de soldados e animais espalhados, restos de armas e escudos destruídos, um cheiro de morte estava impregnado no lugar. Sirgoth viu Linian suspirar fundo com o susto que tal visão lhe causará. Desceu de sua montaria e caminhou por um tempo entre os corpos, Umaru e Linian permaneceram montados. Tomou um dos escudos quebrados e observou nele o desenho de uma águia.
- Conhece o significado da águia?– Perguntou Sirgoth erguendo o escudo para que Linian pudesse vê-lo.
- Sim! É o símbolo de Hermine. Deve ter sido uma terrível batalha.
Umaru, que havia se afastado de Linian e ainda permanecia montado, tomou a palavra enquanto observava dois corpos caídos em meio aos soldados.
- Deve ter sido uma batalha terrível sim Linian, mas também covarde. Não sei que tipo de homem ataca mulheres e crianças. Melhor irmos embora desse lugar. Não há nada com os mortos que possa nos interessar – Umaru falava em um tom sereno e sua expressão era grave e pesarosa.
Sirgoth dirigiu a ele um olhar de aprovação, montou de novo e chamou-os para partirem.
- Teremos que ser mais prudentes agora, nosso caminho esta ficando perigoso.
Tinham daí em diante a opção de continuar seguindo pela planície, mas sabiam que era arriscado encontrar acampamentos de soldados da Caledônia ou mesmo de Hermine, então decidiram seguir por um caminho aparentemente mais longo pela floresta a oeste. Ainda que também fosse este um caminho desconhecido, a floresta seria mais segura do que a estrada.
O tempo passava veloz à medida que avançavam pela floresta densa, que a cada novo dia parecia fechar-se mais sobre eles, até que chegaram ao ponto em que o sol quase não penetrava na copa das árvores, transformando o dia em noite a não ser por uns poucos raios luminosos. Seguidamente durante a noite ouviam uivos de lobos na floresta e sabiam que o caminho que haviam escolhido já não se fazia tão seguro quanto haviam imaginado.
Montaram acampamento à beira de um riacho, onde puderam se banhar e cuidar dos animais cansados. Umaru todas as noites caçava, levando apenas uma tocha e uma lança de madeira. Estava seguindo os rastros de uma manada de javalis até a beira de um riacho, a noite na floresta era extremamente escura, a tocha estava presa em um tronco alguns metros atrás e estava abaixado junto à trilha quando um galho quebrou atrás de si e fez com que voltasse lançando para trás um olhar assustado. Por diversas vezes havia tido a impressão de estar sendo seguido desde o acampamento, agora tinha certeza de ouvir rosnados em todas as direções ao redor e de ver os olhos vermelhos que brilhavam na escuridão, eram lobos! Correu até onde estava a tocha e tomou-a já sentido as sombras avançarem em sua direção, virou-se rapidamente e já estava cercado, eram lobos enormes como os lobos das estepes das montanhas do norte, mas seus olhares eram malignos. Já poderiam tê-lo atacado desde o acampamento, mas preferiram atemoriza-lo como se isso os agradasse. Tinha que agir rápido e quando percebeu que a grossa camada de folhas sob seus pés estava seca tocou-a com a tocha e o fogo subiu rapidamente. Um dos lobos saltou por entre as chamas em sua direção derrubando-o e fazendo com que a tocha caísse de suas mãos, sentiu o hálito quente em sua face, usou toda a força que lhe restava e arremessou o lobo de volta em direção ao fogo, ergueu-se deixando para trás a tocha caída e correu em direção ao acampamento tropeçando na escuridão e sentindo-os avançarem cada vez mais próximos. Viu então um brilho a sua frente, Sirgoth estava parado, seus punhos estavam em chamas como já havia visto antes, sua expressão era sombria, fez com que o fogo de seus punhos aumentasse queimando a folhagem ao seu redor. Voltaram para o acampamento e fizeram em torno deste um grande circulo de fogo. Durante toda aquela noite revezaram a guarda e sentiram-se cercados como se fossem provocados, impedidos de descansarem antes que o dia amanhecesse.
Ao amanhecer perceberam que os cavalos haviam desaparecido, mas não havia sinal de sangue, apenas um rastro de cavalgaduras e passos humanos em direção ao sul, o que tornava tudo um mistério ainda mais intrigante, havia homens na floresta durante a noite e haviam levado os animais para onde certamente chegariam seguindo os rastros que ainda eram recentes.
Enquanto caminhavam Umaru lembrou-se uma antiga lenda de sua tribo, a lenda dos homens lobos que a cada lua cheia percorriam as montanhas e roubavam as donzelas para procriarem, olhou para Linian que seguia a sua frente e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Estava desse modo perdido em seus pensamentos, quando viu Sirgoth parar subitamente a sua frente, caminhou alguns passos a frente e pode ver a entrada de uma vila em meio a uma clareira que se abria na mata, eram várias casas de madeira e folhagem, ordenadas lado a lado, logo na entrada estava uma grande placa caída, mas as letras estavam apagadas. Na medida que caminhavam era possível ver homens e mulheres se movimentando, então foram perdendo o receio e seguindo vila adentro, de modo que o lugar já não parecia mais tão pequeno como antes. Bem no centro agora havia uma capela, em um estilo bem diferente das demais construções, era construída de tijolos vermelhos, tinha uma grande porta de madeira trabalhada, passaram por ela e seguiram adiante até que encontraram finalmente o que estavam procurando, uma placa em cima de uma portinhola indicava o nome de uma taverna: “Dente de Leão”.
O lugar não tinha um aspecto que se poderia chamar de agradável, era escuro e sujo, mas de depois do tempo que estavam viajando parecia-lhes suficiente. Estava quase vazio, apenas dois homens bebiam e conversavam em uma mesa, um homem robusto estava sentado do outro lado do balcão.
- Algo para comer Senhor? – Perguntou Sirgoth de pé, diante do balcão.
Sem dizer uma palavra ou demonstrar simpatia o homem entregou-lhe um livreto, Sirgoth por sua vez apontou-lhe o que desejavam e devolveu-lhe o livro.
- Vocês tem quartos? - Insistiu Linian, interrogando novamente o taverneiro.
Sem dirigir-lhes o olhar que estava voltado para baixo do balcão o homem finalmente respondeu:
- Quantos dias os Senhores pretendem permanecer aqui?
- No máximo uns dois dias – Respondeu Sirgoth.
- Então serão quatro moedas de prata.
Enquanto terminava de falar ia colocando os pratos sobre o balcão e ao lado destes colocou duas chaves.
- Certamente a dama vai desejar quarto separado não é mesmo? - Disse o homem percebendo que haviam estranhado o fato de haverem duas chaves.
Sirgoth então se dirigiu a Umaru:
- Ao menos se lhe falta humor ele tem bom senso.
A noite já caia e enquanto comiam e conversavam animadamente o lugar ia se enchendo, todos quanto entravam pareciam observa-los com estranheza. Eram homens e algumas poucas mulheres, alguns traziam consigo instrumentos musicais. Tocavam, cantavam e tiravam seus pares para dança. Diversas vezes alguém se aproximava da mesa e convidava Linian, mas insistentemente ela negava a todos, até que resolveram que era hora de descansar.
Umaru não conseguia dormir, mesmo aquele lugar caindo aos pedaços parecia confortável demais para um bárbaro das montanhas. Então ficou revirando na cama de um lado para o outro, olhando para as paredes escuras iluminadas pela tocha, até que um barulho vindo do corredor chamou-lhe a atenção, eram passos fortes e um rosnado que tinha certeza de haver escutado antes. Saltou da cama em um pulo e percebeu que Sirgoth já estava de pé ao seu lado, quando se dirigiram para a porta um estrondo tomou conta do lugar e ela foi arremessada na direção de Umaru atingido-o em cheio e lançando-o contra a parede. Parado, onde antes havia uma porta estava uma criatura imensa, meio lobo e meio homem, os olhos vermelhos faiscavam e as mandíbulas escancaradas deixavam à mostra as enormes presas. Sirgoth lançou um olhar sobre a tocha, única fonte de iluminação do quarto que ficava presa junto à parede, o fogo parecendo estar vivo cresceu e saltou sobre a fera, tomando-a por completo, mas não impedindo que ela saltasse em sua direção e cravasse as enormes unhas em seu peito, fazendo com que caísse de costas, tendo sobre si o seu enorme peso. Tentou alcançar a espada de Umaru caída ao lado da cama quando uma enorme mordida acertou-lhe na altura do ombro. Quando seus dedos já estavam bem próximos da lâmina a criatura deu um urro de dor e repentinamente foi arremessada para o lado, cravado em suas costas estava um enorme pedaço de madeira retirado dos restos da porta. Umaru golpeou-a com a espada mais duas vezes até que finalmente estivesse morta, então um pensamento tomou-lhe a mente.
- Linian! Eles querem Linian Sirgoth!–Enquanto falava corria em direção ao quarto de Linian. Sirgoth, ferido, seguiu-o.
No meio do corredor, antes do quarto, estava mais um homem-lobo, parecia maior e mais medonho que o anterior. Sirgoth afastou com o braço Umaru que havia parado dois passos a sua frente e gesticulando fez com que uma enorme bola de fogo se formasse a partir de sua mão e tomasse todo o corredor, atingido em cheio o inimigo que foi arremessado com tamanha violência pela explosão que sumiu de vista, deixando um caminho de fogo nas paredes, no teto e no chão até o fim do corredor. Como Umaru havia calculado, a porta do quarto de Linian estava aberta e o quarto vazio, Sirgoth então pode ouvir gritos a distancia que Umaru parecia não perceber, puxou-o pelo braço e ambos buscaram a saída da taverna que estava vazia. Quando, porém, atravessaram a porta de saída um enorme susto novamente parecia ter-lhes tomado o espírito ao perceber que a vila estava tomada pelas criaturas. Em sua primeira visão Sirgoth calculou que deveriam ser em número de quarenta enormes criaturas e no meio delas estava a maior de todas, carregando Linian que gritava desesperadamente. Não havia dúvidas, ou Sirgoth usaria todo seu poder como jamais havia tentado ou desistiria de salva-la ou mesmo de salvar suas próprias vidas, ergueu os braços e deu um enorme grito, o corpo de Umaru transformou-se em uma tocha incandescente, mas não sentia, porém queimar-se. Um enorme circulo de fogo foi crescendo ao redor de Sirgoth, expandido-se cada vez mais e colocando em chamas um enorme número dos inimigos que corriam assustados e tentavam apagar as chamas. Umaru correu furioso e ajudado pela magia arremessava com um só golpe aqueles que se colocavam em seu caminho. Quando chegou até Linian saltou e cravou por inteiro a espada naquele que a segurava, tomando-a pelos braços. Estava desorientado, sem saber para onde seguir quando percebeu que as chamas o haviam abandonado, viu Sirgoth caído ao longe e um enorme número de homens-lobo ao seu redor, correu na tentativa de alcança-lo antes que pudessem se recompor da repentina derrota que haviam sofrido, tomou-lhe nos ombros como já havia feito com Linian e um único lugar pareceu lhe viável para se manter seguro: a grande capela no centro da vila, correu tendo atrás de si seus perseguidores famintos e quando parou diante da grande porta de madeira notou estranhamente que haviam parado de avançar a uma certa distancia, havia algo naquele lugar que impedia que aproximassem. No interior o lugar se mostrou mais impressionante, com bancos de madeira bem esculpidos e divididos em quatro fileiras, decorado com toda uma tapeçaria vermelha, grandes luminárias pendiam do teto até um grande altar no fim do corredor central. Ainda era possível ouvir os uivos do lado de fora, mas ali estariam seguros, Sirgoth permanecia desacordado nos ombros de Umaru.
- Venha Linian! Deve haver algum lugar em que possamos repousa-lo com mais conforto – Enquanto falava caminhava para uma das duas portas que ficavam atrás do altar.
Encontram um quarto vazio com quatro camas e apesar de estar aparentemente abandonado o lugar era limpo e confortável. Umaru dormiu profundamente enquanto Linian durante toda a noite cuidava do ferimento no ombro de Sirgoth que parecia delirar a todo tempo. Estava exausta quando o dia amanheceu e Sirgoth não parecia demonstrar nenhum sinal de melhora, agora estava ardendo em febre. Umaru permanecia todo o tempo ao lado da cama.
- Temos que sair daqui, já procurei por todo esse lugar e não há comida ou qualquer medicamento – Disse Umaru.
Linian ficou parada por instante, notando que nem havia se dado conta na noite anterior que Umaru estava falando no dialeto comum aos humanos, ainda que fosse uma fala arrastada e cheia de dificuldades.
- É melhor então que saiamos juntos, se algo acontecer a você nós não teremos mesmo nenhuma chance de sobreviver e entre morrer lá fora ou ficar aqui e morrer de fome é melhor arriscar uma chance de ir embora desse lugar – Respondeu-lhe Linian.
Para surpresa de ambos a vila estava vazia, não havia nenhum sinal de homem ou lobo. Caminharam até o estábulo da taverna onde haviam estado hospedados e viram então a figura de um menino que trançava a cauda de um cavalo.
- Bonito animal não é? Eu o encontrei na floresta umas noites atrás. Devia ser de algum viajante que o perdeu. Gostam de cavalos?
Cada instante naquele lugar parecia se tornar mais misterioso e maligno que o anterior. O que faria aquele menino ali naquele lugar, numa vila tomada por criaturas malditas? Sirgoth certamente buscaria essas respostas, mas bárbaros não gostam de feitiçaria e a vida de Sirgoth estava em risco.
- Dou minha espada por esse cavalo garoto, é uma legitima espada de do reino de Hermine – Enquanto falava Umaru retirava da bainha a espada com o desenho do unicórnio, símbolo de Hermine, gravado na lâmina. Os olhos do menino brilharam e logo jogou novamente a cela sobre o animal. De longe ainda o viram acenar enquanto entravam novamente na floresta com a intenção de nunca mais voltar aquele lugar.
- Você me surpreendeu com a facilidade de aprender nossa língua, mas também tenho minhas surpresas – Disse Linian sorrindo.
- Do que você esta falando? – Umaru parou o cavalo. Linian retirou do vestido um pergaminho e o desenrolou na direção de Umaru.
- Vejo que é um mapa, mas não posso compreender suas escritas.
- É um mapa de toda essa região, arranquei da parede da taverna. A escola deve estar a uns dois dias daqui.
Umaru apenas sorriu e seguiu na direção que ela havia indicado, na esperança de chegar na escola a tempo de salvar a vida de seu amigo.

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