sábado, 3 de novembro de 2007

Capítulo II

II

Dias de esquecimento

Acordar naquele dia fez Sirgoth arrepender-se amargamente por não ter ao menos tentado uma fuga enquanto havia possibilidade. Estava deitado em um chão úmido, cercado por paredes de pedras frias e grossas, certamente era um dos calabouços de um forte de Arkedun, provavelmente muito abaixo do nível do solo, a porta da frente era de um ferro maciço, com uma pequena janela de onde se via as tochas que iluminavam o corredor, e vindo deste se podia, a todo o tempo, ouvir gritos de agonia e gemidos. Uma vez por dia um guarda arremessava por uma fresta um pouco de comida, insuficiente para alimentar uma criança, mas que fez com que Sirgoth sobrevivesse por longos quarenta e cinco anos lunares. Certa vez soubera por um dos guardas que ao ser achado caído na estrada não havia mais junto a ele nenhuma das crianças, aliviara-se com isso e ao mesmo tempo preocupava-se do que lhes teria acontecido, lembrava-se das palavras que havia escutado na floresta, seu destino estava atado ao destino dos pequenos, imaginava como poderiam estar e como o mundo estaria mudando enquanto tentava não perder a conta do tempo que estava preso, riscando nas paredes os dias que se passavam. Era difícil sobreviver à loucura que o calabouço impunha sobre suas esperanças e nos dias mais frios aquecia-se junto ao fogo, sua única companhia durante longos anos, quando tentava exercitar sua mente e seu corpo, imaginando o que faria se um dia conseguisse a liberdade, conhecer os lugares dos quais só havia ouvido falar durante toda sua vida.

Até que em uma manhã despertou ao som de correntes e de uma velha tranca de aço se abrindo. Pela mudança na umidade do ar, sabia que era o inicio de mais uma manhã, fazia anos que não ouvia esse barulho, anos que não se ouvia uma só porta abrir ou fechar. Em seguida escutou barulho de armaduras e passos no corredor, mas não ousou olhar, sabia que os soldados do calabouço não usavam armaduras. Repentinamente o barulho pareceu aumentar próximo à cela, até que um estalo fez com a tranca de sua cela se abrisse e surgiu a imagem de quatros guardas, dois deles vestidos com armaduras da infantaria Arkeduniana, facilmente reconhecidas pela lua e pela serpente desenhadas junto ao peito, outros dois que seguiam mais a frente também usavam armaduras, mas de porte mais fino e trabalhado, exalavam um odor de perfume e bebida que se tornou mais forte que o costumeiro cheiro de mofo impregnado no ar. Estava encolhido em um canto enquanto aproximavam dele a tocha. Um dos dois homens que vinha à frente dirigiu-se a ele.

- Vejam o que temos aqui Qual é o seu nome?

Como Sirgoth permanecia em silêncio dirigiu-se então a um dos guardas que seguravam as tochas.

- Leve-o e ponha-o entre os demais que serão levados.

Dali em diante não houve mais diálogo nem mesmo entre os guardas que caminharam durante muito tempo pelos corredores do calabouço, recolhendo outros presos que, como Sirgoth, tinham suas mãos amarradas às costas e seguiam empurrados pelos que haviam ficado do lado de fora da cela, e agora podia notar que eram em número de quinze ou vinte. Quando todos pareciam ter sido tirados de suas celas foram conduzidos uma vez mais através dos corredores que formavam um grande labirinto. Sirgoth seguia observando e notava que seria realmente impossível para alguém conseguir fugir do forte, como muitas vezes havia pensado.

Ao final dos corredores terminaram por sair em uma caverna, o que confirmava sua suspeita de que o forte era construído abaixo do solo. Depois de percorrerem caminhos tortuosos através da caverna chegaram a uma saída em meio a uma floresta, não podia ser aquela a saída principal, caso fosse não conduziriam presos conscientes por ela, a não ser que pretendessem executá-los a seguir. Havia três carroças arrumadas e dois animais atados a cada uma, sobre elas estavam montadas jaulas que a primeira vista deveriam comportar uns dez ou doze homens cada, em seguida foram divididos e colocados nas carroças, alguns nem sequer conseguiam se por de pé e muitos nem mesmo chegaram ao meio do caminho que seguiu por uma trilha floresta adentro desde o amanhecer até quando a noite finalmente caiu e as carruagens pararam. Os soldados começaram então a arrastar os homens para fora da carruagem, subiram de volta e seguiram pelo mesmo caminho de onde haviam vindo, fazia muito frio e uma chuva fina começava a cair. Na escuridão era possível ver muito pouco, Sirgoth fez com que uma chama crescesse em seus punhos para se livrar da corda e iluminar a noite, facilitando para que pudesse procurar pelos outros. Percebeu que estavam à beira de um grande pântano, havia muitos corpos, mas nenhum sinal de vida. Quando já aceitava sua procura como inútil, encontrou imerso na lama um sobrevivente, sua respiração estava fraca, puxou-o para baixo de uma árvore e tentou aquece-lo apesar da chuva que se tornava mais forte, terminou adormecendo.

- Acorda estranho! Temos uma longa caminhada.

Alguém o estava sacudindo pelos ombros, o sol claro fazia arder seus olhos, a voz era forte e o dialeto comum aos montanheses. A sua frente estava um homem negro, robusto, que tentava acorda-lo.

- Sou Umaru, das tribos do norte. Eu vi o que fez ontem, você deve ser um feiticeiro. Seu fogo pode nos ajudar a sobreviver e preparar a caça que vamos precisar em nosso caminho.

E Umaru se mostrou realmente um grande caçador, mesmo naquele naquela região pantanosa conseguia caçar e mante-los vivos, suas habilidades bárbaras e o fogo de Sirgoth os animavam a continuar caminhando dia e noite. Contava sobre sua vida na tribo e sobre como havia perdido todos os seus homens ao ser capturado pelo exército de Arkedun há quinze anos. Uma grande amizade crescia entre os dois, embora não parecesse que duraria muito tempo, pelo fato de que Umaru a todo tempo falava da intenção de seguir em busca de seu antigo povo e Sirgoth não pensava em retornar para o norte, queria seguir para o sul, em busca dos lugares que havia imaginado durante os dias de cárcere, desejava sair em busca de recuperar todo o tempo que havia perdido e quem sabe reencontrar as crianças, ainda que para isso tivesse mais tarde que retornar ao norte. Estimavam que, pelo tempo que haviam seguido desde a prisão não deveriam estar muito longe de Arkedun, mas seguiam as estrelas e caminhavam sempre em direção ao sul.

Já haviam contado vinte luas quando acamparam em meio à relva e já dormiam enquanto a fogueira permanecia acesa, quando foram subitamente acordados pelo barulho de cavalos, calcularam que houvesse bem próximo deles uma estrada, a noite estava clara, caminharam na direção do barulho até que chegaram finalmente a estrada. Caminharam nela por algum tempo até que Sirgoth encontrou marcas de cascos de cavalo recentes, dois homens montados haviam seguido por ali em direção ao sul, certamente ninguém sem uma patente se arriscaria a viajar durante a noite, ainda que fosse uma noite clara, o que os fazia acreditar que deveriam ser soldados. Ainda examinavam o solo em busca das marcas quando ouviram novamente uma troteada maior e mais próxima, saltaram a beira da estrada e aguardaram até que três carruagens surgiram na curva ao norte. Repentinamente uma idéia apoderou-se de Umaru, arrastou um pesado tronco e jogou-o no meio da estrada por onde passariam as carruagens, Sirgoth entendeu o recado e o galho explodiu em chamas quando as carruagens já estavam bem próximas, fazendo com que os animais assustados desequilibrassem os homens que as conduziam. Agora com a luz do fogo estava claro que eram soldados, sacaram suas espadas e saltaram assustados e desordenados das carruagens. Umaru saltou como uma pantera do lugar onde havia estado escondido, seus punhos serrados acertaram a cabeça de um dos soldados, arremessando-lhe o elmo a distancia e fazendo com que caísse em inconsciência. Dois soldados que estavam próximos avançaram, a agilidade do gigante das montanhas fez com esquivasse do primeiro golpe de espada que passou rente a sua cintura, em resposta acertou o queixo do soldado com as costas da mão colocando-o fora de combate, porém nem sua agilidade salvou-o de um terceiro homem e um golpe na altura da barriga abriu-lhe um profundo corte, fazendo com que recuasse, então quando esperava um segundo e fatal golpe, a lâmina de uma espada surgiu banhada de sangue através do soldado e atrás dele, de pé, empunhando a espada, estava Sirgoth. Demonstrando uma vez mais surpreendente agilidade, o bárbaro tomou a espada caída ao seu lado e golpeou o ar acima da cabeça de Sirgoth, tombando o homem que lhe vinha pelas costas, de forma que não se via mais sinal de movimento ao redor a não ser o dos animais assustados. Sirgoth olhou os passos na estrada, havia mais seis homens, todos fugiram em direção ao norte, certamente havia alguma vila ou cidade bem próxima dali onde sabiam que seriam acolhidos devido a patente que carregavam. Ainda examinava os rastros quando foi interrompido por Umaru, que examinava as carruagens.

- Veja Sirgoth, o que encontrei!

Aproximou-se e viu dentro de uma das carruagens uma mulher de belíssima aparência, estava encolhida em um canto, visivelmente assustada, tanto que nem pensara em saltar da carruagem e fugir. Sirgoth se lembrou de que havia estado assim quando os soldados entraram no calabouço e aproximaram dele a tocha.

O bárbaro percebeu que ela não compreendia o que ele fava com Sirgoth em sua linguagem, comum apenas aos bárbaros do norte.

- Diga a ela que em minha terra não matamos ou ferimos mulheres!

Sirgoth ficou por um instante a observa-la, tinha o cabelo negro e longo, trajava um vestido branco e nobre.

- Diga-nos seu nome - Disse Sirgoth.

Permaneceu em silêncio por um tempo e ainda em uma fala arredia e assustada respondeu-lhe.

- Linian é meu nome. Por favor não me mate! Apenas deixe-me aqui e os soldados voltaram para buscar-me.

Ambos riram interiormente de sua inocência em acreditar que os homens iriam voltar.

- Certamente precisaremos de seu ouro e sua prata, assim como sua comida, mas não creio que seus soldados voltem para buscá-la, são mal disciplinados e mal treinados até mesmo para alguém como eu, que nada sabe das artes da espada - Disse Sirgoth, estendendo a mão para ajudá-la a descer da carruagem.

Umaru esforçava-se inutilmente para compreender o que está acontecendo.

- O que disse ela?

- Pediu para seguir conosco. Ajude-me a desatar os animais antes que os soldados “retornem”, agora temos animais e comida de verdade, mas teremos que cavalgar rápido e fora da estrada para não sermos encontrados ao amanhecer.

Seguiram juntos por incontáveis luas, de modo que na maior parte do tempo Umaru apenas observava Sirgoth e Linian conversarem, já que não compreendia o dialeto em que conversavam. Somente poucas vezes se comunicavam por gestos ou pelo intermédio de Sirgoth. Através de Linian souberam que dois grandes reinos, Hermine e Caledônia, estavam em guerra a mais de 60 ciclos lunares pelas terras que intermediavam os dois reinos. Seu pai, um nobre da corte de Hermine, resolvera mandá-la para uma escola de sábios ao sul, onde calculava que estaria segura caso Hermine viesse a perder a batalha. Uma noite, quando estavam sentados à beira da fogueira, Linian contou-lhes como o antigo tirano de Arkedun havia morrido e como o novo imperador havia assumido o trono, então finalmente compreenderam por que haviam sido libertos de maneira tão repentina, possivelmente não interessava ao novo imperador manter retidos os presos de seu antecessor.

Pela tarde, quando paravam para descansar, Sirgoth e Linian aventuravam-se a tentar aprender com Umaru o manejo da espada e quase sempre Linian obtia mais sucesso que Sirgoth. Embora Umaru não tivesse muitas qualificações como instrutor, por não serem os bárbaros especialistas em espadas, ao menos fazia com que já não parecesse mais aquela menina tão indefesa que haviam encontrado tempos atrás.

Mesmo com todas as paradas que continuamente faziam para descansar, estavam extenuados de tão longa caminhada e começaram a pensar que não seria má idéia a possibilidade de se dirigirem e hospedarem por um tempo na escola de sábios. Para Sirgoth, de modo especial, essa possibilidade se mostrava interessante pelo fato de que poderia faze-lo entender tudo que havia mudado desde sua prisão. Com esse pensamento, continuaram seguindo para o sul na esperança de encontrarem a escola.

“As três vidas correram pelos campos, sem destino ou juízo, deixando-se levar pelo vento qual um pequeno pássaro em seu primeiro vôo, ao sabor do medo e a emoção de cada passada, de cada noite iluminada pela lua”.

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